Postagens mais visitadas

Regulamentação da Hospedagem Domiciliar Digital no Brasil

Hospedagem Domiciliar Digital no Brasil

A Regulação da Hospedagem Domiciliar Digital

Hospedagem Domiciliar Digital: Os Desafios Jurídicos, Urbanos, Condominiais e Tributários no Brasil

Os desafios jurídicos, urbanísticos, tributários e sociais relacionados à ausência de um marco normativo específico para a atividade de hospedagem domiciliar por meio de plataformas digitais no Brasil, com especial enfoque no cenário legislativo brasileiro.

A expansão exponencial de serviços como o Airbnb e similares evidenciou graves lacunas normativas, tensionando os fundamentos da função social da propriedade, da autonomia condominial, da tributação isonômica e da ordem urbanística. O artigo apresenta uma análise crítica das iniciativas recentes da OAB-RJ e OAB-SP, bem como dos SECOVIs e do Ministério do Turismo, articulando elementos constitucionais, normativos, jurisprudenciais e práticos. Com base em fontes jurídicas, reportagens jornalísticas confiáveis e documentos técnicos, sustenta-se que a regulamentação dessa nova modalidade de hospitalidade é imperativa para a modernização legislativa brasileira, a proteção dos espaços residenciais e o equilíbrio concorrencial do setor turístico.

A intensificação do uso de plataformas tecnológicas que intermediam hospedagens de curta duração em residências particulares transformou profundamente o cenário jurídico e econômico do setor turístico brasileiro. Serviços como o Airbnb, Vrbo, Booking, TripAdvisor, entre outros, permitiram que milhares de cidadãos passassem a ofertar suas residências como alternativas ao modelo hoteleiro tradicional. Esta transformação, associada a uma economia digital desregulamentada, provocou reações nos mais diversos setores da sociedade civil, suscitando questões jurídicas de grande complexidade e urgência.

A falta de regulamentação adequada contribuiu para a proliferação de práticas comerciais em contextos residenciais, muitas vezes à revelia dos regramentos condominiais e da legislação urbanística. Além disso, os efeitos colaterais sobre a arrecadação tributária municipal, a concorrência desleal com a rede hoteleira, a ausência de controles sanitários, de segurança e de responsabilidade civil revelaram um cenário de insegurança normativa que demanda resposta institucional robusta. Diante disso, o presente artigo pretende, a partir de uma abordagem analítico-normativa, explorar as principais tensões entre a inovação e o direito, com especial atenção às movimentações legislativas e institucionais que, em 2025, reacendem o debate em torno da regulamentação da hospedagem domiciliar no Brasil.

A Constituição da República de 1988 estabelece como fundamentos da ordem econômica a valorização do trabalho humano, a livre iniciativa e a função social da propriedade. No entanto, tais princípios devem ser compreendidos de forma harmônica, e não absolutizados. O direito à livre iniciativa — ao permitir que qualquer cidadão disponibilize seu imóvel para aluguel de curta duração — não pode se sobrepor ao direito coletivo à moradia digna, à segurança condominial, ao sossego e à convivência urbana ordenada.

A função social da propriedade exige que o uso do bem não comprometa os direitos dos demais coproprietários ou da coletividade urbana. A expansão da atividade de hospedagem sem o devido controle regulatório gera conflitos intensos, desde sobrecarga em áreas comuns de edifícios residenciais, insegurança para moradores, aumento de circulação de desconhecidos até impactos negativos no tecido social do entorno.

Além disso, o pacto federativo brasileiro delega aos municípios a competência para legislar sobre uso do solo e ordenamento urbano. Contudo, a ausência de uma norma federal específica deixa os entes locais desguarnecidos de diretrizes técnicas uniformes para fiscalizar e regulamentar a atividade. Assim, o presente estudo reconhece a urgência de uma legislação nacional clara, capaz de estabelecer padrões mínimos, a serem complementados por normativas municipais adaptadas à realidade local.

A Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional do Rio de Janeiro (OAB-RJ), por meio de sua Comissão de Turismo, apresentou ao Ministério do Turismo, em abril de 2025, uma minuta de projeto de lei com o objetivo de regulamentar a hospedagem domiciliar em âmbito nacional. O documento propõe, entre outros pontos:

  • Obrigatoriedade de registro no Cadastur;
  • Licenciamento e autorização da prefeitura;
  • Recolhimento do Imposto Sobre Serviços (ISS);
  • Consentimento expresso dos condomínios;
  • Responsabilidade solidária das plataformas quanto ao cumprimento da legislação.

Essa proposta, construída com base em pareceres de especialistas e experiências internacionais, foi rapidamente acolhida pela OAB Federal, pela OAB-SP e pelas entidades representativas do setor imobiliário, como o SECOVI-RJ e o SECOVI-SP. A Convenção SECOVI 2025, realizada em São Paulo, destacou a importância do projeto como instrumento de preservação da finalidade residencial dos imóveis, especialmente em grandes centros urbanos como Rio de Janeiro, São Paulo, Florianópolis e Salvador.

É necessário reconhecer que a regulamentação não deve ter caráter proibitivo ou repressivo, mas sim garantir a inserção segura da hospedagem domiciliar dentro de um sistema jurídico coerente, eficiente e equitativo. O marco regulatório ideal deve conjugar as seguintes diretrizes:

  • Reconhecimento da hospedagem como atividade econômica lícita, mas sujeita a deveres fiscais e administrativos;
  • Estímulo à autorregulação dos condomínios por meio de assembleias deliberativas;
  • Criação de faixas tributárias progressivas para evitar oneração desproporcional;
  • Integração de dados entre Cadastur, Receita Federal e Secretarias Municipais;
  • Inclusão de normas sanitárias, de acessibilidade e de proteção ao consumidor.

Em março de 2025, uma assembleia condominial realizada em um dos edifícios mais icônicos da orla de Ipanema, situado na Avenida Vieira Souto, culminou com a aprovação de uma norma interna proibindo de forma definitiva a prática de locação por temporada através de plataformas digitais como o Airbnb e afins. A motivação para essa deliberação partiu de uma série de incidentes acumulados nos meses anteriores, incluindo festas até altas horas da madrugada, entrada e saída de pessoas não identificadas, comportamento inadequado nas áreas comuns e até mesmo problemas relacionados ao descarte de lixo em horários e locais irregulares. A gota d’água, segundo relatos de moradores, foi um episódio de vandalismo no hall social após uma noite de eventos promovida por turistas estrangeiros. Essa reação, ainda que extrema, ilustra um dilema crescente: o uso intensivo e rotativo de imóveis residenciais por hóspedes temporários ameaça a estabilidade comunitária, o que tem levado um número cada vez maior de condomínios, em bairros como Leblon, Copacabana e Lagoa, a adotar medidas semelhantes. Trata-se de uma resposta pragmática a uma realidade que o direito ainda não regulamentou com a clareza exigida pela complexidade dos fatos.

Esse contexto encontra respaldo e reverberação institucional na audiência pública promovida pela Câmara Municipal do Rio de Janeiro, realizada no mesmo mês, para debater o conteúdo do Projeto de Lei nº 107/2025, de autoria do vereador Salvino Oliveira. O plenário do Legislativo carioca esteve lotado por representantes de duas frentes irreconciliáveis: de um lado, proprietários de imóveis, síndicos simpáticos à economia compartilhada e usuários da plataforma que viam na proposta um cerceamento à liberdade de dispor da própria propriedade privada; de outro, dirigentes de entidades do setor hoteleiro, administradores de condomínios e juristas preocupados com a ausência de normas claras e os impactos da desregulação urbana. A polarização tornou-se evidente quando os defensores da proposta apontaram que a ausência de tributação, licenciamento e fiscalização sobre as hospedagens digitais cria uma concorrência desleal com a rede hoteleira tradicional, que cumpre rigorosa legislação fiscal, sanitária, trabalhista e urbanística.

Durante o encontro, dados divulgados por especialistas em urbanismo e representantes do IBGE demonstraram um crescimento acentuado das locações de temporada em bairros nobres da cidade. No bairro de Ipanema, por exemplo, estimou-se que cerca de 14% dos imóveis estariam permanentemente cadastrados em plataformas de aluguel por temporada. Essa transformação silenciosa do perfil urbano não é neutra: ela altera a composição demográfica, valoriza artificialmente os imóveis, diminui a oferta de moradia tradicional e, como consequência, eleva os preços médios dos aluguéis residenciais, tornando inviável a permanência de antigos moradores e trabalhadores locais. O fenômeno, que alguns estudiosos denominam “turistificação residencial”, acentua as desigualdades urbanas e impõe novos desafios ao planejamento urbano sustentável.

O Projeto de Lei 107/2025 traz medidas que buscam combater essa assimetria. Uma das inovações do texto é a determinação de que as plataformas digitais de intermediação, mesmo aquelas com sede fora do município ou do estado, deverão reter e repassar automaticamente o Imposto Sobre Serviços (ISS) para os cofres municipais, uma vez que a prestação do serviço se dá em território local. A proposta também cria exigências de regularidade tributária e de licenciamento urbano, inclusive condicionando a atividade ao cumprimento de normas sanitárias e à apresentação de certidões negativas de débito junto aos fiscos locais. A principal inspiração para essas medidas advém de experiências internacionais, como as observadas em Lisboa, Paris e Amsterdã, onde o fortalecimento da arrecadação e a integração dos dados entre plataformas e governos locais demonstraram impactos positivos tanto na fiscalização quanto na redistribuição dos recursos públicos.

Outra diretriz central do projeto é a vinculação obrigatória ao Cadastur, o sistema federal de registro de prestadores de serviços turísticos, administrado pelo Ministério do Turismo. A inscrição, que até então era meramente recomendatória, passa a ser compulsória e prévia ao exercício da atividade. Além disso, os proprietários devem apresentar autorização expressa e registrada em ata de assembleia condominial autorizando a oferta do imóvel. Tal medida visa reforçar a autonomia dos condomínios e garantir que a decisão sobre permitir ou não hospedagens temporárias seja coletiva, não individual, uma vez que afeta diretamente todos os moradores. O projeto também impõe um teto de dias por ano em que a atividade pode ser exercida, limitando sua prática a um escopo que efetivamente configure “hospedagem ocasional”, evitando a caracterização de atividade comercial travestida de uso residencial.

Contudo, entidades representativas da economia compartilhada, como a Associação Brasileira de Anfitriões Digitais e representantes jurídicos do Airbnb, alegam que a regulamentação em debate é excessivamente burocrática e potencialmente excludente para pequenos proprietários que dependem dessa renda alternativa para complementar seus ganhos mensais. Argumentam que o Brasil corre o risco de repetir os equívocos observados em cidades como Nova York e Berlim, onde regulações draconianas provocaram o desaparecimento do pequeno anfitrião e favoreceram grandes operadores imobiliários, gerando concentração de oferta e redução da competitividade. Além disso, essas entidades destacam que o setor movimenta bilhões de reais anualmente e contribui para a descentralização da atividade turística, impulsionando economias locais fora dos grandes polos hoteleiros.

De fato, experiências internacionais sugerem que a hiper-regulamentação pode ter efeitos colaterais indesejados. Em Barcelona, por exemplo, após a imposição de restrições severas em 2023, houve um aumento expressivo no valor dos aluguéis de longa duração, associado à migração de investidores para o mercado de locação convencional. Em Lisboa, relatórios oficiais apontaram que as proibições em zonas históricas levaram à ociosidade de centenas de imóveis que anteriormente eram economicamente ativos. Tais exemplos reforçam a tese de que a regulamentação deve ser construída com base em evidências, respeitando a realidade local e promovendo um equilíbrio entre direitos de propriedade, responsabilidades fiscais e o interesse público.

Assim, diante dos múltiplos interesses envolvidos, a construção de um marco legal equilibrado no Brasil dependerá da capacidade institucional de articular uma governança participativa, transparente e tecnicamente qualificada. É imperativo envolver os poderes Legislativo e Executivo, os ministérios setoriais, o setor privado, as associações de moradores e os especialistas em urbanismo e direito público. A hospedagem domiciliar não é apenas uma questão de liberdade econômica individual: trata-se de um fenômeno transversal, que tangencia políticas de habitação, mobilidade urbana, arrecadação tributária, segurança coletiva e identidade das comunidades locais. O desafio não é proibir, mas integrar. E para isso, será necessário legislar com inteligência, sensibilidade e coragem.

Espero ter ajudado,

Dra. Patrícia Pereira Moreno

OAB Paraná 91.784 /PR

OAB Rio Grande do Sul 110.913A /RS

OAB São Paulo 132.664 /SP

Referências

CÂMARA MUNICIPAL DO RIO DE JANEIRO. Projeto de Lei nº 107/2025. Rio de Janeiro: CMRJ, 2025. Disponível em: https://www.camara.rj.gov.br.

GLOBO, O. Projeto de Lei mira regulação do Airbnb e condomínios já proíbem aluguéis por plataformas. O Globo, Rio de Janeiro, 25 mar. 2025. Disponível em: https://oglobo.globo.com.

GLOBO, O. Donos de imóveis lotam galeria da Câmara do Rio contra e a favor de projeto que regula locações. O Globo, Rio de Janeiro, 25 mar. 2025. Disponível em: https://oglobo.globo.com.

PASSAGEIRO DE PRIMEIRA. Projeto quer que Airbnb repasse ISS ao município. São Paulo, abr. 2025. Disponível em: https://passageirodeprimeira.com.br.

SÍNDICONET. Projeto de lei propõe normas rígidas para locação por plataformas digitais no RJ. São Paulo, abr. 2025. Disponível em: https://www.sindiconet.com.br.

TERRA BRASIL NOTÍCIAS. Nova lei pode acabar com o Airbnb e os aluguéis por aplicativo? Brasília, abr. 2025. Disponível em: https://terrabrasilnoticias.com.

TECNOBLOG. Airbnb no Rio: projeto de lei pode impor regras para locação por apps. São Paulo, abr. 2025. Disponível em: https://tecnoblog.net.

VIAGEM E TURISMO. O que muda com o projeto que quer regulamentar o Airbnb no Rio. São Paulo: Editora Abril, abr. 2025. Disponível em: https://viagemeturismo.abril.com.br.

PANROTAS. Regulamentação do Airbnb no Rio pode impactar turismo e crescimento econômico. São Paulo, mar. 2025. Disponível em: https://www.panrotas.com.br.

VEJA RIO. Airbnb na mira: novos debates e propostas sobre hospedagem digital no RJ. Rio de Janeiro, mar. 2025. Disponível em: https://vejario.abril.com.br.

Palavras-chave: Economia digital; Urbanismo jurídico; Plataformas tecnológicas; Direito condominial; Tributação municipal; Cadastur.

Nenhum comentário:

Postar um comentário